Monday, January 12, 2015

Cólera obscura (conto)

Lorente era um homem bom. Acordava cedo todos os dias para ir ao trabalho. Era impecável. Carlos o invejava, talvez porque ele nunca parecia se abalar. Era como um tronco firme de árvore, que mesmo após a enxurrada estava ali de pé, com disciplina, com rigor, com postura, e compostura. A paciência era a maior de suas virtudes, ele sabia, esperava o momento certo. Não fazia nada por acaso, tudo tinha um porque de ser. Pobre Lorente. Sua esposa, Fátima, achava que Lorente era desligado demais, que era desapegado das pessoas. Queria que ele fosse um pouco mais possessivo, afinal, como ela iria saber se ele de fato a amava, se ele não sentia nem sequer um fio de ciúmes?

Naquele dia, Lorente estava se sentindo indisposto, cansado. Seu corpo, febril e mole, se arrastava, escorregadio, da cafeteria até seu escritório. Em sua mesa, um retrato de Fátima, No computador, uma série de emails o atormentava, com questões e problemas que transitavam sem parar buscando sabe-se lá o que. O homem, atormentado, pesado e febril, naquela tarde, queria se deslocar para casa. Era cedo. Contudo, ele não podia mais estar ali, tinha uma vontade terrível de descansar. O sol ainda estava alçado no céu, quando ele dirigiu até sua casa em seu sedã preto. Quando chegou, abriu a porta sorrateiramente, e viu que os corpos esguios estavam lá. O mundo inteiro se congelou, apenas o tic tac do relógio se fazia ouvir.

De repente, uma explosão de cólera! Fúria, espasmos. Os corpos unidos, de mulher e homem, espichados na cama. Todos se olharam, uns ainda ofegantes, outros ficando ofegantes. O olho arregalado do pobre homem nunca havia estado dessa forma, parecia que ia saltar-lhe das órbitas. Por um segundo, por um instante, onde estava Lorente? Onde estava aquele Lorente disciplinado, que fazia a coisa certa sempre que possível? Era impossível! Porque diabos um castiçal? Porque uma casa moderna do século XXI teria um castiçal?


O castiçal foi comprado na época em que se mudaram para aquela casa. Combinava com os móveis de madeira. Fátima gostava de ter decorações barrocas. Do barroco, veio o dualismo, e a expressão horrenda no rosto de Lorente. Quando Fátima se deu conta era tarde demais, o castiçal havia sido violentamente chocado à cabeça de Carlos. O sangue tinha um gosto hediondo, que diabos! Lorente não matou a mulher, deixou a viver. Para que ela sofresse mais com a imagem do cadáver do amante. Na cabeça de Lorente a nona sinfonia de beethoven tocava, como no filme Laranja Mecânica. Psicopata. O psicopata nascido da disciplina. 


Não... Foi apenas um sonho! Um sonho terrível! Despertou suado, enquanto seu coração palpitava a mil. Qual a distância entre o sonho e a realidade? Pensou. Precisava mudar.

1 comment:

  1. Mano, que brisaaaaaaaaaaado!
    Falando sério agora, eu fiquei desconfortável lendo o conto, imaginando as cenas detalhadamente descritas.
    Me lembrou o poeta Augustus dos Anjos, lembra dele?
    Só o final que achei muito conveniente, mas na boa, curti bastante seu texto.
    Tu escreve muito bem.

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